O morador

Tiros são ouvidos ao longe, Marcelo abraça sua esposa na cama e sente seus batimentos cardíacos acelerarem, o sol ainda não nasceu e ele sabe que não vai mais dormir nessa noite, pega o celular e constata que são 4:15 da manhã. Ele então se levanta e vai preparar um café, desde que os militares invadiram a comunidade onde mora os dias têm sido assim: tiros, revistas, toque de recolher e medo.
Marcelo tem 30 anos, nasceu e cresceu naquela comunidade, nunca pensou em sair dali até agora, tudo mudou quando o governo instaurou uma tal intervenção. Ele não sabe o que isso significa em termos legais, sabe apenas o que significou na vida dele e de toda a comunidade.
Todo mundo sempre conviveu com os traficantes e de certa forma eles “protegiam” os moradores, pelo menos é assim que se sentiam. Agora com os militares a coisa é diferente, todo militar tem sempre em mão uma arma, e não hesita em colocar na cara de qualquer um que entre na frente deles. Eles não sabem distinguir um trabalhador de um criminoso e só pensam em fazer o seu trabalho a qualquer custo. É claro que o crime organizado não vai se render tão fácil e a guerra se tornou inevitável.
Na última semana um vizinho morreu com uma bala perdida, Marcelo até deu entrevista para um jornal. Leandro estava no lugar errado e na hora errada, foi uma grande chacina e além dele morreram três traficantes e um militar. É triste ver na casa do Leandro sua mãe chorando todos os dias, ele tinha apenas 19 anos e estava indo trabalhar em uma lanchonete no turno da noite. Pelo menos as homenagens nos jornais foram muito lindas. Aparentemente foi um militar que atirou. Parece que eles não têm nenhuma consideração pela comunidade, atiram primeiro e perguntam depois, trouxeram muito medo para nossas casas.
Medo afinal virou o companheiro número um de todos. Marcelo acorda com medo, sai de casa com medo, trabalha com medo, volta para casa com medo, sente medo ao ouvir tiros, vai dormir com medo. Sua esposa está sem trabalho e precisa procurar emprego, com isso as vezes tem que andar pela comunidade e já sofreu várias revistas com fuzil no rosto, os militares parecem não respeitar nem as mulheres e as crianças. Ele só queria que eles fossem embora e levassem junto os bandidos, pois a maioria da população da comunidade é de pessoas honestas e trabalhadoras que não merecem passar por tudo o que estão vivendo, não entendem muito bem o que é intervenção, não entendem o porquê de os militares estarem ali, mas sabem que eles estão apenas cumprindo ordens. Ordens das pessoas que mereciam estar sofrendo no seu lugar, ordens de políticos corruptos, que com sua ganância matam muito mais que os traficantes nos morros. 
Marcelo tinha um sonho, antes da intervenção ele e sua esposa queriam ter um filho, agora ele não sabe se o mundo é um lugar seguro para se criar uma criança. Ele só pensa em se mudar dali e tentar recomeçar em outro lugar, porém não tem dinheiro para uma mudança. Marcelo não vê a hora dessa guerra acabar, mas ele não consegue ter esperanças. Ele todo dia acha que vai morrer, ele sente que não há mais espaço para sonhos, pois não sabe se haverá mais tempo para realiza-los...

Este post é o segundo de uma série de dois contos que escrevi para retratar de forma lúdica o meu pensamento quanto a intervenção militar no Rio de Janeiro. Desde já informo que não conheço a realidade, não estou lá e nem pretendo aqui fazer uma crítica social ou moral, é apenas uma obra de ficção, com nomes e enredos inventados por mim.

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