O Militar

Celso acorda para mais um dia de trabalho, são 5:45 e em uma oração ele pede a Deus que o proteja e também seus amigos de profissão durante todo o dia. Celso coloca o uniforme, vai até o quarto do filho Davi, de 4 anos, dá um beijo demorado em sua testa, ele nunca sabe se será o último, depois encontra com sua esposa na cozinha, se despede dela com mais um beijo e sai.
A sua arma no coldre, municiada, está pronta para entrar na ativa se necessário. Sua farda carrega, além da cor verde habitual, a cor vermelha de sangue, só que apenas Celso consegue enxergar isso. Dentro da corporação o nome Celso não existe, lá ele é chamado de Freitas, que nem é seu último sobrenome, porém foi o que lhe designaram, no fundo ele sente que não passa de um número, não só ele, mas todos os seus colegas e também superiores. A sociedade tem muitos pensamentos ambíguos, uns acreditam que são protetores, outros que são criminosos, uns pensam que são amigos, outros que são inimigos.
Há poucos dias seu colega de batalhão, Batista, morreu em troca de tiro com traficantes, faleceram também três delinquentes e um morador, bala perdida. A imprensa ressaltou a “violência” do batalhão de Celso na ação, houveram muitas condolências, todas muito justas, ao morador morto, infelizmente pela arma de um militar que certamente não tinha a intenção de tirar a vida de um inocente, porém as reportagens ao citar a morte do Batista, apenas diziam que “um militar morreu em ação” e nada mais, não houve comoção, ninguém perguntou sobre o filho de 5 meses que ele deixou e nem sobre a esposa. Ele não foi o primeiro e não será o último a perder a vida nessa guerra, novamente se tornou apenas um número. Celso sentia que a opinião pública, talvez influenciada pela imprensa, estava contra ele e seus colegas, que estão tentando proteger aqueles que muitas vezes os hostilizam, parece que ninguém consegue ver o lado dele e de seus colegas, muitas vezes parecem até não respeitar a presença deles.
Celso vive com medo, dentro da favela em uma operação, ele não sabe quem é o morador e quem é o bandido. Não há uma etiqueta nas pessoas que as diferenciem e as ações exaltadas dele e de seus colegas são, na maior parte das vezes, fruto da incerteza e da insegurança de que qualquer uma das pessoas que ali está pode ser um potencial inimigo armado e pronto para matar. Diferentemente dos moradores, os militares sim têm uma etiqueta gigante e os bandidos sabem quem eles são de longe, eles se sentem alvos fáceis. Ele nunca sabe se voltará para casa à noite. Só que a volta ao lar também é aterrorizante. Quantos bandidos o identificaram na comunidade? Será que algum deles o está seguindo? Às vezes Celso, em seu carro voltando para casa, se pega com a mão na arma em um semáforo. O jovem com um guarda-chuvas na mão atravessando a rua na faixa de pedestres a sua frente o faz imaginar que é um traficante com uma metralhadora, ele não deixa de pensar que pode estar enlouquecendo. Agora além da cor vermelha, sua farda começa também a exalar o cheiro de sangue. Ele não vê a hora de chegar em casa e abraçar sua esposa e seu filho. Na verdade, ele não vê a hora dessa guerra acabar e o inferno que ele está vivendo desaparecer, para que as horas de sono voltem a ser tranquilas e que o beijo que ele dá no Davi todas as manhãs não tenha mais gosto de último.
Muitas vezes Celso pensa em desistir e em abandonar tudo, mas sua convicção de estar fazendo a coisa certa e tentando transformar a sua cidade e o mundo em um lugar melhor para seus descendentes dá forças para que na manhã seguinte novamente ele acorde, faça sua oração, vista sua farda e comece tudo novamente...

Este post é o primeiro de uma série de dois contos que escrevi para retratar de forma lúdica o meu pensamento quanto a intervenção militar no Rio de Janeiro. Desde já informo que não conheço a realidade, não estou lá e nem pretendo aqui fazer uma crítica social ou moral, é apenas uma obra de ficção, com nomes e enredos inventados por mim.

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